06 de Janeiro de 2020 - 10h50

A INCONSTITUCIONALIDADE DA PROPOSTA DE EXTINÇÃO DE PEQUENOS MUNICIPIOS

A Proposta de Emenda Constitucional 188, de 2019, que integra um pacote de alterações legislativas apelidado de Plano Mais Brasil, que, entre outras medidas de reorganização do pacto federativo, regula a extinção de pequenos Municípios, é flagrantemente inconstitucional, pois viola o art. 60, § 4º, I da CF de 1988, eis que afronta a forma federativa de Estado e, assim, o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana e a isonomia entre os entes da República, cláusula pétrea da ordem constitucional vigente, portanto irrevogável pela vontade transitória de um governo e pelo voto do legislador infraconstitucional.

A proposta mostra-se ainda preconceituosa e carregada de contradição, revelando um profundo desconhecimento dos proponentes em relação aos resultados sociais e fiscais produzidos pelos Municípios catarinenses com população de até 5 mil habitantes, além de um completo desprezo aos reflexos que podem decorrer de tamanha inflexão.

É que a partir de 1988, os Municípios passaram a integrar a República Federativa do Brasil, conforme disciplinado no art. 1º da CF; e, adquiriram autonomia política, administrativa e financeira, conforme consta do artigo 18 em combinação com os artigos 29, 29A, 30 e 31, todos da Carta Magna.

Esta instituição política e jurídica, entretanto, não nasceu com a promulgação da atual Constituição. Ela vem de longe, tendo sido construída historicamente em diversas fases, até alcançar a autonomia em relação aos demais entes que compõem a República: a União Federal, os Estados-membros e o Distrito Federal.

Nesta esteira, é fundamental ressaltar que a experiência de divisão dos Estados-membros em Municípios, com expressa determinação constitucional da autonomia da menor célula formadora da República, é própria do Brasil.

Hely Lopes Meirelles conceitua esta forma de organização ao assinalar que o “Município brasileiro é entidade estatal integrante da Federação. Essa integração é uma peculiaridade nossa, pois em nenhum outro Estado Soberano se encontra o Município como peça do regime federativo constitucionalmente reconhecida. Dessa posição singular do nosso Município é que resulta sua autonomia político-administrativa, diversamente do que ocorre nas demais Federações, em que os Municípios são circunscrições territoriais meramente administrativas. A autonomia do Município brasileiro está assegurada na Constituição da República para todos os assuntos de seu interesse local (art. 30) e se expressa sob o tríplice aspecto político (composição eletiva do governo e edição das normas locais), administrativo (organização e execução dos serviços públicos locais) e financeiro (decretação, arrecadação e aplicação dos tributos municipais)” (Direito Administrativo Brasileiro. 35 ed. São Paulo: Malheiros, 2009, 779).

A Constituição Federal de 1988 estipulou que o Município tem autonomia para tratar dos assuntos de interesse local, o que vem retratado nos artigos 29, 29 A e 30 do Diploma Maior. Como se viu, a autonomia, em síntese, compreende os aspectos político, administrativo e financeiro, respectivamente representados pela eleição do Chefe do Poder Executivo e dos membros do Poder Legislativo municipal, pela organização administrativa e pela instituição, arrecadação e aplicação dos tributos e rendas municipais.

O rol de competências estabelecidas na Carta Magna é capitaneado pela atribuição para legislar sobre assuntos de interesse local, o que, por si só, garante que a lista não é exaustiva ou não se circunscreve apenas aos nove incisos do artigo 30 da Constituição Federal.

Nesse sentido, é de se levar em consideração que a previsão constitucional de atribuir a competência ao Município para legislar sobre assuntos de interesse local, tem uma razão especial, fundamental: a de que é nos Municípios que vivem as pessoas, onde elas edificam as suas famílias e desenvolvem a vida profissional.

Com efeito, não se pode admitir como constitucional a Proposta de Emenda 188, de 2019, que trata da extinção dos Municípios com população não superior a 5 mil habitantes que até 30 de junho de 2023 não atinjam a sustentabilidade financeira, ou seja a arrecadação própria equivalente a 10% da receita total municipal.

Ora, a citada PEC, com o fito de reorganizar o pacto nacional republicano, viola de forma direta o art. 60, § 4º, I da CF de 1988, pois promove a abolição da forma federativa de Estado ditada pela ordem constitucional atualmente em vigor, na medida que prevê a extinção de uma grande parcela de entes que compõem a República Federativa do Brasil, no caso os Municípios com população inferior a 5 mil habitantes, que não atingirem até 30 de junho de 2023 a arrecadação própria de pelo menos 10% do total da receita, numa ação absolutamente antidemocrática, em desrespeito a soberania popular.

É que a forma federativa de Estado escolhida pela atual CF prevê expressamente o Município com ente formador da República, sendo que a teor do art. 18, § 4º a criação, incorporação, fusão e desmembramento de Municípios, dar-se-á por lei estadual e dependerá de consulta prévia, mediante plebiscito, às populações dos Municípios envolvidos, após divulgação de estudos de viabilidade.

O aviltamento da Carta Magna é, por isso, evidente, pois o plebiscito constitui-se em forma de exercício da soberania popular (art. 14, I, CF), não podendo ser desconsiderado, como pretende a PEC, ainda mais, como no caso concreto, porque veiculado em sede de disposições constitucionais transitórias. Assim, a regra matriz da Carta Magna poderá ser suplantada por um dispositivo transitório, notadamente inconstitucional.

A incorporação de pequenos Municípios por vizinhos, sem qualquer consulta plebiscitária, não encontra respaldo na CF e importa em verdadeira abolição da forma federativa de Estado, pois invalida, abruptamente, as leis estaduais que instituíram estes entes, pois tais diplomas foram editados com espeque na ordem constitucional vigente.

A forma federativa de Estado, como cláusula pétrea, não pode ser extirpada para atender aos objetivos momentâneos ou circunstanciais de um governo ou de uma parcela do parlamento, porque tal importa em verdadeira dilapidação do patrimônio jurídico decorrente da Constituição Federal.

Não bastasse isso, a afronta a forma federativa de Estado, importa em violação ao princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, pois além de afastar o cidadão do processo de participação no destino do seu Município, afetando sobremaneira o exercício da soberania popular, desconsidera os benefícios sociais disponibilizados pelo Poder Público nas pequenas localidades.

Nos Municípios de até 5 mil habitantes as políticas públicas de atenção básica de saúde, assistência social, educação, infraestrutura urbana e rural e saneamento básico, apenas para pontuar alguns serviços, são prestados com maior efetividade que nas maiores cidades, bastando avaliar os indicadores de desenvolvimento humano disponíveis e estabelecer as necessárias proporcionalidades em relação ao número de habitantes e a receita por eles auferida. Nas pequenas cidades, as gestões fazem mais com menos recursos.

A PEC desmerece os resultados sociais produzidos pelas gestões municipais com até 5 mil habitantes e fixa-se, exclusivamente, na premissa da arrecadação tributária, análise que se mostra demasiadamente tacanha e inadequada, pois, evidentemente, nas pequenas cidades a arrecadação de IPTU é naturalmente baixa, em vista do reduzido números de imóveis tributáveis, o mesmo ocorrendo em relação ao ISS, pelo baixo número de empresas prestadoras de serviços nelas estabelecidas, e, por conseguinte em relação aos demais tributos municipais.

Não é possível, portanto, definir a viabilidade dos pequenos Municípios apenas com base na sua arrecadação própria. A vida das pessoas que vivem e trabalham nestas localidades deve ser considerada, pena de aviltamento do princípio fundamental da Dignidade da Pessoa Humana.

De outra banda, mas no mesmo tom, os resultados fiscais alcançados pela gestão administrativa nos pequenos Municípios superam as marcas obtidas pelos Municípios com população e receita maiores, com destaque para o controle das despesas com pessoal, o equilíbrio das contas públicas, a reduzida utilização de recursos de empréstimos ou financiamentos, a superação dos limites constitucionais em saúde e educação e a efetiva destinação de receita própria para investimentos.

Assim, a PEC em análise atenta contra a isonomia entre os entes que compõem a República, na medida que trata de forma desigual aqueles que se encontram em situação de igualdade, pois abrange os Municípios com população de até 5 mil habitantes, sujeitando-os a incorporação – extinção, na verdade -, sem afetar os Municípios com população superior a 5 mil habitantes e os próprios Estados-membros que, em 30 de junho de 2023, não atinjam a sustentabilidade financeira, ou seja a arrecadação própria equivalente a, no mínimo, 10% da receita total respectiva.

Por isso é que se diz que a PEC 188 revela extremado preconceito em relação ao pequenos Municípios, taxando-os indevidamente de inviáveis ou desequilibrados economicamente, quando os números mostram exatamente o contrário, desde que comparados com os resultados fiscais e sociais por eles produzidos.

Assim, é inevitável questionar: Porque somente os Municípios de até 5 mil habitantes precisam ser incorporados a outras cidades, se existem Municípios com população maior que também não atingem receita própria de 10% do total arrecadado?

Ou: Porque esta discriminação em face dos pequenos Municípios, se existem Estados-membros com situação fiscal vergonhosa, de recuperação questionável?

Os pequenos Municípios, portanto, não podem ser responsabilizados pelas mazelas e desigualdades do atual pacto federativo, pois a extinção de tais entes não se revela como a solução mais adequada para a reformulação pretendida, mostrando-se contraditória, na medida que considera ideal apenas os entes públicos que detêm sustentabilidade financeira, mas desconsidera, de forma a destruir o princípio constitucional da isonomia, os resultados sociais e fiscais positivos produzidos pelos Municípios catarinenses com população de até 5 mil habitantes.

Isso não bastasse, a PEC 188 não se preocupa com os reflexos negativos em setores estratégicos para o Estado e para o Brasil, como por exemplo na agricultura familiar, responsável pela produção de alimentos e pela nossa sustentação econômica, através da exportação.

Ora, com retrocesso pretendido, é preciso estimar o número de agricultores familiares que deixarão de atuar no campo ou quantos filhos de agricultores deixarão de suceder seus pais na propriedade rural, se o Município onde atuam deixar de existir, voltando ao status quo ante, na condição de distrito ou vila.

É inevitável associar os problemas antigos que assolavam as vilas e distritos transformadas em pequenos Municípios, antes de suas emancipações, diante da flagrante possibilidade de extinção, com a dificuldade de acesso aos programas de atenção básica em saúde, redução das filas nas cirurgias e procedimentos especializados, acesso à educação básica em escolas mais perto de casa, implantação de creches, manutenção de estradas rurais, coleta de lixo no meio urbano, pavimentação de vias urbanas, investimentos em praças esportivas e áreas de lazer, acesso a programas de incentivo ao desenvolvimento rural, acesso aos serviços de assistência social, atuação próxima do Conselho Tutelar, desenvolvimento local pela instalação de indústrias, ampliação do comércio e dos serviços, participação popular nos destinos da cidade, através dos Conselhos e conferências, apenas para exemplificar.

Portanto, diante da flagrante inconstitucionalidade da PEC 188, de 2019, no que concerne a extinção dos pequenos Municípios, a mesma não se encontra em condições de ser aprovada pelo Congresso Nacional, pena de violação do art. 60, § 4º, I da CF de 1988, pois afronta a forma federativa de Estado, a dignidade da pessoa humana e a isonomia entre os entes que compõem a República.

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