A
Proposta de Emenda Constitucional 188, de 2019, que integra um pacote de alterações
legislativas apelidado de Plano Mais
Brasil, que, entre outras medidas de reorganização do pacto federativo, regula a
extinção de pequenos Municípios, é flagrantemente inconstitucional, pois viola
o art. 60, § 4º, I da CF de 1988, eis que afronta a forma federativa de Estado
e, assim, o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana e a isonomia
entre os entes da República, cláusula pétrea da ordem constitucional vigente,
portanto irrevogável pela vontade transitória de um governo e pelo voto do
legislador infraconstitucional.
A proposta mostra-se ainda preconceituosa e carregada de
contradição, revelando um profundo desconhecimento dos proponentes em relação
aos resultados sociais e fiscais produzidos pelos Municípios catarinenses com
população de até 5 mil habitantes, além de um completo desprezo aos reflexos
que podem decorrer de tamanha inflexão.
É que a partir de 1988, os
Municípios passaram a integrar a República Federativa do Brasil, conforme
disciplinado no art. 1º da CF; e, adquiriram autonomia política, administrativa
e financeira, conforme consta do artigo 18 em combinação com os artigos 29,
29A, 30 e 31, todos da Carta Magna.
Esta
instituição política e jurídica, entretanto, não nasceu com a promulgação da
atual Constituição. Ela vem de longe, tendo sido construída historicamente em
diversas fases, até alcançar a autonomia em relação aos demais entes que
compõem a República: a União Federal, os Estados-membros e o Distrito Federal.
Nesta
esteira, é fundamental ressaltar que a experiência de divisão dos
Estados-membros em Municípios, com expressa determinação constitucional da
autonomia da menor célula formadora da República, é própria do Brasil.
Hely
Lopes Meirelles conceitua esta forma de organização ao assinalar que o “Município brasileiro é entidade estatal
integrante da Federação. Essa integração é uma peculiaridade nossa, pois em
nenhum outro Estado Soberano se encontra o Município como peça do regime
federativo constitucionalmente reconhecida. Dessa posição singular do nosso
Município é que resulta sua autonomia político-administrativa, diversamente do
que ocorre nas demais Federações, em que os Municípios são circunscrições
territoriais meramente administrativas. A autonomia do Município
brasileiro está assegurada na Constituição da República para todos os assuntos
de seu interesse local (art. 30) e se expressa sob o tríplice aspecto político
(composição eletiva do governo e edição das normas locais), administrativo
(organização e execução dos serviços públicos locais) e financeiro (decretação,
arrecadação e aplicação dos tributos municipais)” (Direito Administrativo
Brasileiro. 35 ed. São Paulo: Malheiros, 2009, 779).
A
Constituição Federal de 1988 estipulou que o
Município tem autonomia para tratar dos assuntos de interesse local, o que vem
retratado nos artigos 29,
O
rol de competências estabelecidas na Carta Magna é capitaneado pela atribuição
para legislar sobre assuntos de interesse local, o que, por si só, garante que
a lista não é exaustiva ou não se circunscreve apenas aos nove incisos do
artigo 30 da Constituição Federal.
Nesse sentido, é de
se levar em consideração que a previsão constitucional de atribuir a
competência ao Município para legislar sobre assuntos de interesse local, tem
uma razão especial, fundamental: a de que é nos Municípios que vivem as
pessoas, onde elas edificam as suas famílias e desenvolvem a vida profissional.
Com
efeito, não se pode admitir como constitucional a Proposta de Emenda 188, de
2019, que trata da extinção dos Municípios com população não superior a 5 mil
habitantes que até 30 de junho de 2023 não atinjam a sustentabilidade
financeira, ou seja a arrecadação própria equivalente a 10% da receita total
municipal.
Ora, a citada PEC, com o
fito de reorganizar o pacto nacional republicano, viola de forma direta o art.
60, § 4º, I da CF de 1988, pois promove a abolição da forma federativa de
Estado ditada pela ordem constitucional atualmente em vigor, na medida que
prevê a extinção de uma grande parcela de entes que compõem a República
Federativa do Brasil, no caso os Municípios com população inferior a 5 mil
habitantes, que não atingirem até 30 de junho de 2023 a arrecadação própria de
pelo menos 10% do total da receita, numa ação absolutamente antidemocrática, em
desrespeito a soberania popular.
É que a forma federativa de
Estado escolhida pela atual CF prevê expressamente o Município com ente formador
da República, sendo que a teor do art. 18, § 4º a criação,
incorporação, fusão e desmembramento de Municípios, dar-se-á por lei estadual e
dependerá de consulta prévia, mediante plebiscito, às populações dos Municípios
envolvidos, após divulgação de estudos de viabilidade.
O
aviltamento da Carta Magna é, por isso, evidente, pois o plebiscito
constitui-se em forma de exercício da soberania popular (art. 14, I, CF), não
podendo ser desconsiderado, como pretende a PEC, ainda mais, como no caso
concreto, porque veiculado em sede de disposições constitucionais transitórias.
Assim, a regra matriz da Carta Magna poderá ser suplantada por um dispositivo
transitório, notadamente inconstitucional.
A
incorporação de pequenos Municípios por vizinhos, sem qualquer consulta
plebiscitária, não encontra respaldo na CF e importa em verdadeira abolição da
forma federativa de Estado, pois invalida, abruptamente, as leis estaduais que
instituíram estes entes, pois tais diplomas foram editados com espeque na ordem
constitucional vigente.
A
forma federativa de Estado, como cláusula pétrea, não pode ser extirpada para
atender aos objetivos momentâneos ou circunstanciais de um governo ou de uma
parcela do parlamento, porque tal importa em verdadeira dilapidação do
patrimônio jurídico decorrente da Constituição Federal.
Não
bastasse isso, a afronta a forma federativa de Estado, importa em violação ao princípio
fundamental da dignidade da pessoa humana, pois além de afastar o cidadão do
processo de participação no destino do seu Município, afetando sobremaneira o
exercício da soberania popular, desconsidera os benefícios sociais
disponibilizados pelo Poder Público nas pequenas localidades.
Nos Municípios de até 5 mil
habitantes as políticas públicas de atenção básica de saúde, assistência
social, educação, infraestrutura urbana e rural e saneamento básico, apenas
para pontuar alguns serviços, são prestados com maior efetividade que nas maiores
cidades, bastando avaliar os indicadores de desenvolvimento humano disponíveis
e estabelecer as necessárias proporcionalidades em relação ao número de
habitantes e a receita por eles auferida. Nas pequenas cidades, as gestões
fazem mais com menos recursos.
A PEC desmerece os
resultados sociais produzidos pelas gestões municipais com até 5 mil habitantes
e fixa-se, exclusivamente, na premissa da arrecadação tributária, análise que
se mostra demasiadamente tacanha e inadequada, pois, evidentemente, nas
pequenas cidades a arrecadação de IPTU é naturalmente baixa, em vista do
reduzido números de imóveis tributáveis, o mesmo ocorrendo em relação ao ISS, pelo
baixo número de empresas prestadoras de serviços nelas estabelecidas, e, por
conseguinte em relação aos demais tributos municipais.
Não é possível, portanto,
definir a viabilidade dos pequenos Municípios apenas com base na sua
arrecadação própria. A vida das pessoas que vivem e trabalham nestas
localidades deve ser considerada, pena de aviltamento do princípio fundamental
da Dignidade da Pessoa Humana.
De outra banda, mas no
mesmo tom, os resultados fiscais alcançados pela gestão administrativa nos
pequenos Municípios superam as marcas obtidas pelos Municípios com população e
receita maiores, com destaque para o controle das despesas com pessoal, o
equilíbrio das contas públicas, a reduzida utilização de recursos de
empréstimos ou financiamentos, a superação dos limites constitucionais em saúde
e educação e a efetiva destinação de receita própria para investimentos.
Assim,
a PEC em análise atenta contra a isonomia entre os entes que compõem a República, na medida que trata de forma
desigual aqueles que se encontram em situação de igualdade, pois abrange os Municípios
com população de até 5 mil habitantes, sujeitando-os a incorporação – extinção,
na verdade -, sem afetar os Municípios com população superior a 5 mil
habitantes e os próprios Estados-membros que, em 30 de junho de 2023, não atinjam
a sustentabilidade financeira, ou seja a arrecadação própria equivalente a, no
mínimo, 10% da receita total respectiva.
Por isso é que se diz que a PEC 188 revela
extremado preconceito em relação ao
pequenos Municípios, taxando-os indevidamente de inviáveis ou desequilibrados
economicamente, quando os números mostram exatamente o contrário, desde que comparados
com os resultados fiscais e sociais por eles produzidos.
Assim, é inevitável questionar: Porque
somente os Municípios de até 5 mil habitantes precisam ser incorporados a
outras cidades, se existem Municípios com população maior que também não
atingem receita própria de 10% do total arrecadado?
Ou: Porque esta discriminação em
face dos pequenos Municípios, se existem Estados-membros com situação fiscal
vergonhosa, de recuperação questionável?
Os pequenos Municípios, portanto,
não podem ser responsabilizados pelas mazelas e desigualdades do atual pacto
federativo, pois a extinção de tais entes não se revela como a solução mais
adequada para a reformulação pretendida, mostrando-se contraditória, na medida
que considera ideal apenas os entes públicos que detêm sustentabilidade
financeira, mas desconsidera, de forma a destruir o princípio constitucional da
isonomia, os resultados sociais e fiscais positivos produzidos pelos Municípios
catarinenses com população de até 5 mil habitantes.
Isso
não bastasse, a PEC 188 não se preocupa com os reflexos negativos em setores
estratégicos para o Estado e para o Brasil, como por exemplo na agricultura
familiar, responsável pela produção de alimentos e pela nossa sustentação
econômica, através da exportação.
Ora, com retrocesso pretendido, é
preciso estimar o número de agricultores familiares que deixarão de atuar no
campo ou quantos filhos de agricultores deixarão de suceder seus pais na propriedade
rural, se o Município onde atuam deixar de existir, voltando ao status quo ante, na condição de distrito
ou vila.
É inevitável associar os problemas
antigos que assolavam as vilas e distritos transformadas em pequenos Municípios,
antes de suas emancipações, diante da flagrante possibilidade de extinção, com
a dificuldade de acesso aos programas de atenção básica em saúde, redução das
filas nas cirurgias e procedimentos especializados, acesso à educação básica em
escolas mais perto de casa, implantação de creches, manutenção de estradas
rurais, coleta de lixo no meio urbano, pavimentação de vias urbanas,
investimentos em praças esportivas e áreas de lazer, acesso a programas de
incentivo ao desenvolvimento rural, acesso aos serviços de assistência social, atuação
próxima do Conselho Tutelar, desenvolvimento local pela instalação de
indústrias, ampliação do comércio e dos serviços, participação popular nos
destinos da cidade, através dos Conselhos e conferências, apenas para exemplificar.
Portanto,
diante da flagrante inconstitucionalidade da PEC 188, de 2019, no que concerne
a extinção dos pequenos Municípios, a mesma não se encontra em condições de ser
aprovada pelo Congresso Nacional, pena de violação do art. 60, § 4º, I da CF de
1988, pois afronta a forma federativa de Estado, a dignidade da pessoa humana e
a isonomia entre os entes que compõem a República.