Em decisão unânime, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu que filhos de criação, mesmo sem vínculo biológico ou registro formal, podem ter direito à herança deixada por quem exerceu o papel de pai ou mãe. A medida reforça o entendimento de que os laços de afeto e convivência também produzem efeitos jurídicos, especialmente no campo sucessório.

A decisão, conhecida como reconhecimento da filiação socioafetiva post mortem, popularmente apelidada de “o afeto vira herança”, garante aos filhos de criação os mesmos direitos sucessórios dos filhos biológicos, ainda que o falecido não tenha formalizado o vínculo em vida.

O reconhecimento judicial da filiação socioafetiva representa um avanço importante no campo jurídico e social.

O filho socioafetivo é aquele que foi cuidado, educado, sustentado e amado como um filho legítimo. A diferença é que, até pouco tempo atrás, faltava o documento que formalizasse esse vínculo. Hoje, a Justiça reconhece que o afeto também produz efeitos jurídicos.

O filho socioafetivo é aquele que, embora não biológico de determinada pessoa, é reconhecido socialmente por ela como se o fosse recebendo continuamente tratamento de filho biológico, com toda a assistência moral, afetiva e material, fazendo com que seja visto pela sociedade como filho legítimo. A esse tratamento recebido se dá o nome de estado de posse de filho.

Em grande parte das vezes, os pais socioafetivos registram os filhos em seus nomes, como ocorre na adoção. No entanto, o que acontece quando um pai cria uma criança como filho, mas não registra a paternidade? Num cenário pior, e se esse pai já tiver falecido e deixado herança, o filho socioafetivo terá direito aos bens?

Diferentemente do filho biológico, o filho socioafetivo não poderá recorrer a um simples exame de DNA para comprovar seu status de filho. Ao biológico, a mera genética milita em seu favor. O socioafetivo, por sua vez, deverá fazer prova de que detém o estado de posse de filho, demonstrando que o pai o tratava como se filho fosse, independentemente de laços biológicos.

Outro ponto importante é que a filiação socioafetiva, entretanto, não se confunde com a adoção, uma vez que não depende de destituição do vínculo familiar biológico, ou mesmo de procedimento formal e solene. Ela se baseia em uma situação real de afetividade já vivenciada e que pode ser atestada judicialmente ou extrajudicialmente, diretamente nos cartórios de registro civil.

 

Esse tipo de reconhecimento exige provas da relação familiar, como registros de convivência, fotos, cartas, testemunhos e responsabilidades compartilhadas ao longo da vida. Quando demonstrada a posse do estado de filho, ou seja, a vivência pública e contínua dessa relação parental, o Judiciário tem considerado suficiente para a inclusão do herdeiro na partilha.

Com famílias cada vez mais diversas e afetos que ultrapassam os laços genéticos, a Justiça brasileira sinaliza uma mudança de paradigma: o afeto, quando comprovado, pode ter o mesmo peso que a biologia, inclusive no momento da sucessão.

Juliane Silvestri Beltrame

Advogada especialista familiar, escritora.